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O Problema da
O Problema da "Sina" da Liberdade na Obra de Freud e Skinner

O compromisso apologético da igreja não é apenas defensivo, mas inclui também importantes aspectos positivos e ostensivos nos quais a fé cristã é promulgada através da demonstração de que o pensamento não cristão será sempre incoerente e, em última instância, falho.1 Quer seja na defesa do evangelho contra os ataques seculares ou na investida intencional do apologeta contra o pensamento anticristão, é crucial que se trabalhe com uma prática e uma argumentação transcendental, ou seja, demonstrando a “impossibilidade do contrário.” Isto significa que o apologeta cristão não toma sua fé como suposição ou proposta a ser examinada e comparada com o pensamento secular, mas toma-a como pressuposto sem o qual toda argumentação, todo raciocínio e todo comportamento termina em incongruências, antinomias e auto-negação. Neste sentido, todo cristão que anseia por uma apologética verdadeiramente cristã deverá ter em mente um senso claro e correto daquilo que Agostinho expressou quando disse: “Fecisti nos ad Te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in Te.“2 O apologeta cristão pressupõe esta verdade não só para si, mas também para os que negam o cristianismo e não só com respeito a anseios subjetivos, mas também anseios intelectuais.3

Dos muitos temas que o pensamento secular procura decifrar, o tema da liberdade humana se mostra particularmente interessante, pois, de forma clara, este tema só tem sentido último dentro dos pressupostos cristãos. Toda vez que a liberdade humana é considerada sem referência ao Criador, ou seja, autonomamente, ela sofre uma “sina,” pois termina por negar-se.4 Da mesma forma, toda vez que o tema da liberdade é negado, descobre-se um apelo secreto a uma liberdade ainda mais autônoma. Como Ulisses, o herói grego, tentando navegar entre Cila e Caribdis, o pensador não cristão se vê dividido entre reinterpretar o mundo de forma a eliminar Deus, e assim destruir as bases para atribuir ao homem um valor transcendente e um fundamento para a liberdade, ou então procurar preservar o valor humano e a liberdade, mas destruindo seu prospecto de uma ciência que explica o universo sem referência transcendental. O problema é que, por estar separado de Deus e envolvido num processo inevitável de “supressão da verdade” (Rm 1.18-27), o não cristão, e mesmo muitos cristãos, terão dificuldade de perceber o paradoxo envolvido no discurso secular sobre a liberdade humana. É aqui que o trabalho apologético ostensivo é imprescindível: Como demonstrar a “sina” da liberdade no pensamento secular?

Seria imprudente tentar provar a “sina” da liberdade no pensamento secular em poucas páginas; talvez seja mais frutífero limitar-se a um objeto mais específico que ilustre a problemática toda. A liberdade como um tema dentro da literatura psicoterapêutica moderna apresenta solo fértil para um trabalho apologético de ataque, pois o desenvolvimento da idéia de liberdade em tal contexto é palingenésico,5 evolutivo do ideal da liberdade dentro do contexto geral do pensamento moderno.6 Este fato se dá especialmente como resultado inevitável da tensão entre dois ideais humanísticos herdados pelo pensamento psicológico moderno: o “ideal de ciência” (no contínuo Descartes-Hobbes-Leibniz-Locke-Hume), no qual o homem era visto como determinado por fatores externos ao seu “ego” (um espectador e observador daquilo que determina sua existência),7 e o “ideal de personalidade” (Rousseau-Kant-Fichte-Schelling-Hegel-Feuerbach), que em contrapartida buscou bases para liberdade, dignidade e valor na autodeterminação humana — uma autonomia que transcendesse todas as constrições materiais e o âmbito dos fenômenos.8

Essa tensão é patente na obra de Sigmund Freud (1859-1939), cuja metapsicologia postula o drama humano como o conflito entre contingências (externas e internas) e o ego sôfrego, numa dialética epistemológica que é ao mesmo tempo cientificista e humanista.9 Esta mesma tensão permeia a maioria das teorias metapsicológicas subseqüentes e é notavelmente manifesta, ainda que profundamente transformada, no comportamentismo ou behaviorismo de Burrhus Frederick Skinner (1904-1990), cuja proposta é o desenvolvimento de uma técnica de manipulação do comportamento comparável em poder e precisão às tecnologias físicas e biológicas, e que envolve a negação de conceitos como liberdade, bondade, dignidade, valor pessoal, autonomia e autodeterminação.10

No interesse de explorar a “sina” da liberdade tomando como microcosmo o tratamento que este tema central recebe na literatura psicoterapêutica moderna, Freud e Skinner se apresentam como excelentes representantes. Como cada um deles, ostensivamente ou secretamente, tenta preservar o ideal de autonomia humana e conciliá-lo com uma visão científica determinista? O conceito de liberdade é paradoxal e se autodestrói em qualquer estrutura que tome o homem abstraído de sua relação com Deus, seu Criador.11 Ao observar a “sina” desse conceito na metapsicologia de Freud e Skinner descobre-se a história da constante luta e eventual impossibilidade de salvaguardar um lugar para a liberdade humana e, ao mesmo tempo, de desenvolver uma “ciência” sobre a natureza humana. Tal história tem como subtexto o constante retorno da rebeldia e idolatria do homem supostamente autônomo.12

I. a liberdade no solo freudiano

No ambiente freudiano a idéia de liberdade deriva seu significado de forma muito óbvia do contexto geral, visto em termos da tensão já mencionada entre seu impulso cientificista (o “ideal científico,” inevitavelmente determinista) e seus anseios humanistas (o “ideal da personalidade”). Erich Fromm oferece um resumo do conceito da natureza humana proposto por Freud:

Freud construiu um “modelo da natureza humana.” Este modelo foi construído no espírito do pensamento materialista do século dezenove. O homem é concebido como uma máquina dirigida por uma quantia relativamente constante de energia sexual chamada “libido.” Essa libido causa dolorosa tensão que só é reduzida pelo ato de liberação psicológica; esta liberação da dolorosa tensão Freud chamou de “prazer.” Após a liberação, acontece um novo aumento da tensão, resultante da própria química do corpo, requerendo conseqüentemente outra redução da tensão, ou seja, satisfação prazerosa. Esta dinâmica, que leva da tensão para o alivio e de volta para a tensão — da dor para o prazer e para a dor outra vez — Freud denominou de o “princípio do prazer.” Ele contrastou este princípio, com o “princípio da realidade,” que diz ao homem o que buscar e o que evitar no mundo real em que vive, para garantir a sobrevivência. Esse princípio da realidade muitas vezes entra em conflito com o princípio do prazer e a condição básica para a saúde mental é um certo equilíbrio entre os dois. Em contrapartida, se qualquer destes princípios estiver em desequilíbrio, manifestações neuróticas ou psicóticas resultarão.13

Desde já se percebe que, a despeito de ver o homem como basicamente dominado por impulsos internos (libido) e limitado pela realidade externa, Freud começa a criar um espaço para o ideal de liberdade, pois se o equilíbrio entre os princípios é imprescindível, é preciso crer que há um “eu,” um ente, que deverá gerenciar o equilíbrio. Uma breve exploração dos contornos da metapsicologia freudiana se faz necessária.

A. Contornos da Metapsicologia Freudiana

Na obra An Outline of Psychoanalysis14 (Um Esboço da Psicanálise), escrita no final de sua vida, o próprio Freud afirma “resumir as doutrinas da psicanálise” e declará-las “dogmaticamente.”15 Sem abandonar o pressuposto básico dos princípios do prazer e da realidade, mas desenvolvendo-os de forma mais madura, Freud declara sua visão sobre motivação humana e o funcionamento da psiquê como dependente de duas hipóteses sobre o “aparato psíquico.” Tais hipóteses, diz Freud, são pressupostos de âmbito filosófico, ainda que sua justificação deva proceder apenas de seu sucesso prático.16

A primeira hipótese diz respeito à geografia do “aparato psíquico,” divido em três aspectos: (1) o id (termo alemão, ist, próximo do it inglês), parte mais antiga da psiquê, presente desde o nascimento, herdado e instintivo, representando o “passado orgânico,” naturalmente desconhecido do consciente;17 (2) o ego (alemão, ich, significando simplesmente o “eu”), a quem é atribuída a tarefa de mediar entre o id e o mundo externo — os instintos e a realidade do mundo — além de representar a força do presente, controlar os movimentos voluntários da psiquê, mediar a percepção e controlar os instintos;18 e finalmente (3), o superego (über-ich, “sobre-eu”), que representa a internalização da cultura e da moral (“passado cultural”), especialmente a influência dos pais.19 A totalidade do “aparato psíquico” se move intrinsecamente para a busca do prazer (o “princípio do prazer,” ou libido), com o id e o superego representando respectivamente as heranças genética e social, enquanto o ego representa a experiência interna do indivíduo em suas interações com os instintos, a cultura e a realidade externa (“princípio da realidade”).20

A segunda hipótese correlaciona as atividades do aparato psíquico com qualidades e níveis de consciência. Ainda que reconhecendo a rejeição, por parte de muitos filósofos e pensadores, da idéia de que algo possa ocorrer na mente num nível inconsciente, Freud afirma ser impossível ignorar tal realidade e sugere, então, que os processos da psiquê ocorrem em pelo menos três níveis. (1) Há processos mentais que são conscientes e estão sempre à disposição; são primariamente atividades do ego, mas não exclusivamente. (2) Certos processos e atividades são pré-conscientes, pois não estão imediatamente na superfície da psiquê, mas podem ser facilmente alcançados e compreendidos. (3) Por último, há processos psíquicos que são verdadeiramente subconscientes, sendo primariamente domínio do id e, secundariamente, do superego, apenas ocasionalmente e apenas com grande dificuldade aceitando intrusões do ego. Freud estabelece ainda duas qualificações com relação a esses níveis de consciência: ainda que o pré-consciente possa vir à tona com relativo pouco esforço, o subconsciente só pode ser trazido à tona quando as resistências inerentes são quebradas; os processos do id, que ocorrem no subconsciente e são chamados “processos primários,” seguem “leis” totalmente distintas das do ego consciente ou pré-consciente (“processos secundários”).21

A relação entre o aparato psíquico e as qualidades mentais não deve ser vista como estrita, mas sempre de forma dinâmica. À medida que o id, o ego e o superego interagem nos três níveis de consciência, há uma luta interna entre os instintos, a necessidade de preservação e as pressões da vida em sociedade, que exigem o sacrifício de certas satisfações da libido. Em sua teoria dos instintos Freud elabora as causas e a dinâmica desta tensão. Declara que “o poder do id expressa o verdadeiro propósito da vida individual do organismo,” que “consiste na satisfação de suas necessidades natas.”22 Freud continua:

As forças que assumimos existir por trás das tensões causadas pelas necessidades do id, chamamos de instintos. Eles representam as demandas somáticas por sobre a psiquê. Ainda que sejam a causa última de toda atividade, são por natureza “conservadoras,” possuindo a “tendência de restabelecer” um estado previamente abandonado.23

Essa dupla tendência dos instintos (satisfação das necessidades biológicas e restabelecimento de um estado anterior) levou Freud a categorizar os instintos em dois grupos, ou seja dois tipos de instintos básicos: (1) Eros, ou libido, que busca “unidade, vida e conexão,” e (2) Tanatos, o instinto de morte, que tende à destruição, morte, separação e o retorno às “origens.”24 Tais instintos básicos agem em dialética tanto um contra o outro como em combinação entre si, de forma análoga à forças de atração e repulsão.25

Nessa perspectiva, os problemas mais sérios da psiquê estão enraizados em diferentes tipos de desequilíbrio com relação aos instintos e até mesmo a morte do indivíduo é, em última instância, parte desta dinâmica: “A tendência destruidora reside permanentemente em seu interior [do homem], até que, finalmente, alcança sucesso em levar o indivíduo à morte, mas não antes, possivelmente, de sua libido se esgotar ou se fixar de forma desvantajosa.”26 Quando em equilíbrio, os instintos do id motivam o ego à “auto-preservação e à preservação da espécie” para que a busca da satisfação dos instintos seja preservada; isto o ego faz “descobrindo, em relação ao mundo externo, o método mais favorável e menos perigoso de obter satisfação.” Ao mesmo tempo o superego motiva à “limitação da satisfação” para não colocar em risco os benefícios da vida em sociedade, especialmente a segurança que a vida em sociedade provê contra as forças destruidoras e os perigos da natureza que podem ameaçar a vida e assim também a possibilidade do prazer.27

Três implicações importantes são salientadas por Freud, em sua fase mais madura, quanto à teoria dos instintos: primeiro, o fato de que os instintos (Eros e Tanatos) são tendências orgânicas inerentes ao homem. Segundo, o fato de que “ambas as classes de instintos, assim Eros como também o instinto de morte … têm operado e trabalhado um contra o outro desde a origem da vida” e não são, portanto, resultado de um processo evolucionário. E terceiro, mesmo com o desenvolvimento da teoria dos instintos e com a ênfase na tensão entre os instintos, a idéia original de uma tensão paralela entre o “princípio do prazer” e o “princípio da realidade” não é abandonada, mas apenas incorporada na nova estrutura.28

Quando as duas hipóteses sobre o aparato psíquico e as qualidades mentais, a teoria dos instintos e as respectivas implicações, são tomadas como um todo, o quadro da natureza humana que emerge é a de um ser formado por sua herança orgânica (os instintos do id), por sua herança cultural (a apropriação da cultura pelo superego) e por um centro mediador da consciência (o ego). Os instintos dominam primariamente o subconsciente, enquanto que o ego domina primariamente o consciente e o superego, apenas pequenas partes de cada nível. Esse ser é dirigido pelos instintos básicos de vida (Eros) e de morte (Tanatos), que estão em conflito e que também se combinam na busca do prazer, a qual é, por sua vez, constantemente confrontada com os limites e as ameaças da realidade externa em seus aspectos naturais e sociais. O mundo externo ameaça a satisfação dos instintos tanto com seus perigos quanto por seus limites, e isso gera medo. A vida em sociedade ajuda no controle da natureza e na segurança da preservação da vida, mas exige a renuncia parcial da satisfação dos instintos, o que tende a gerar um sentimento de culpa.29 Como diz Fromm: “Freud vê o homem como motivado por contradições, pelas contradições entre sua luta por prazer sexual e sua luta pela sobrevivência, e pelo domínio de seu meio ambiente,” ao que acrescenta, “para Freud o homem é motivado por forças conflitantes, e certamente não apenas pelo desejo de satisfação sexual.”30

O paradigma freudiano quanto à natureza humana é impressionante em sua consistência e coerência com a racionalização de uma visão naturalista (mesmo que em suas bases não tenha a justificação empírica que o próprio Freud afirmava ter31), mas, ao mesmo tempo, não passa de uma manifestação da estrutura dialética do cientificismo pós-kantiano.32 Ainda que todo seu trabalho seja coberto de ideais humanistas e de interesse na preservação da personalidade, ele está enraizado numa visão científica determinista que separa o âmbito da natureza do âmbito da liberdade. É o determinista B. F. Skinner que chama a atenção para a seguinte declaração de Freud:

Talvez o futuro possa nos ensinar a exercer maior influência sobre as quantidades de energia e sua distribuição no aparato da mente pelo uso de substâncias particulares … mas no presente momento não temos nada melhor ao nosso dispor do que as técnicas da psicanálise.33

Como todo pensamento secular é, em última instância, dialético (e particularmente o pensamento que opera na dicotomia natureza/liberdade), Freud não pode desistir de encontrar uma maneira de preservar o ideal da personalidade, ou pelo menos um espaço onde a auto-determinação humana e a esperança de diminuir sua miserável tensão pudessem ser garantidos. Quer fosse através de métodos puramente químicos e biológicos no futuro, ou através de sua “cura falada” (psicanálise), Freud cria ser necessário e possível resguardar um lugar para a liberdade, uma esperança de redenção, uma terapêutica humana autônoma.

B. Liberdade Redefinida no Fortalecimento do Ego

O ponto de concentração, ou ponto de transcendência, através do qual Freud cria ser possível ir além das tensões inerentes à psiquê humana e encontrar base para uma liberdade relativa, é o ego. A despeito do determinismo bio-genético dos instintos do id, e a despeito do determinismo social e cultural do superego — em uma dialética complexa envolvendo impulsos de vida e morte, a busca do prazer e a necessária preservação da vida para possibilitar tal busca — há ainda, para Freud, um “eu,” um centro de consciência que pode não apenas mediar as diferentes forças na psiquê, mas também, quando adequadamente fortalecido, limitar a tensão e os conflitos e, mesmo sem resolver a dialética, propor algo que se assemelha à liberdade, à felicidade. Isso quer dizer que a solução para as tensões e lutas da vida individual se resume num jogo de “relações quantitativas” no equilíbrio de forças psíquicas imposto pelo ego — que, com o auxílio da psicanálise, adquire então um caráter transcendente.34 Freud completa:

Não nos desapontaremos, antes, acharemos perfeitamente compreensível se formos levados à conclusão de que o resultado da luta na qual nos engajamos depende de relações quantitativas, da quantidade de energia que poderemos mobilizar no paciente para nossa vantagem, em comparação com a quantidade de energia trabalhando contra nós.35

Para que a psicanálise, ou qualquer esforço psicoterapêutico, possa fortalecer o ego e auxiliá-lo a equilibrar satisfatoriamente a satisfação dos instintos e a sobrevivência na sociedade e na realidade do mundo exterior, é preciso explorar o id, expor e compreender os instintos, administrar seletivamente o superego, e colocar todas as tensões e conflitos da psiquê sob o controle de um ego “iluminado.”36 O problema é que grande parte da psiquê se esconde no subconsciente ou está reprimida, sublimada, camuflada e transformada pelas próprias tensões. A solução, diz Freud, é fazer um trabalho “arqueológico” que se aproveita de estados de tensão e rebeldia, de negações, de sonhos, e de outras formas indiretas, onde o “material do id subconsciente e o material que foi reprimido tem a possibilidade de forçar-se no ego e na consciência, vindo assim à tona ainda que disfarçadamente. O alvo da psicanálise é, portanto, criar uma ciência que interprete estas manifestações e descubra o id para o ego.37

Em sua função terapêutica, a psicanálise freudiana abandona o seu determinismo e postula um “eu” ao mesmo tempo determinado por sua herança e suas tensões e ainda capaz de transcendê-las e tornar-se parcialmente senhor delas — dessa forma, a liberdade, a dignidade e o valor são relativamente retidos, assim como a autonomia humana. Portanto, de forma bem concreta e a despeito de sua filogenia e ontogenia deterministas, nota-se que Freud estava preocupado em “descobrir” a alma,38 em explorar os segredos do coração humano, ou, usando as palavras de Scharfenberg, descobrir no subconsciente “aquilo que é indisciplinado e indestrutível na alma humana, aquilo que é realmente ‘demoníaco’.”39

Numa estrutura de ponto/contraponto, ao tentar desenvolver uma visão científica da natureza humana (no sentido positivista), Freud acaba também desenvolvendo uma ciência (no sentido de Wissenschaft) de “cura da alma” (Seelenbehandlung).40 Mas estes dois projetos são, um última instância, incompatíveis: se de um lado o conceito humanista de liberdade — com seu ideal de autonomia humana — deveria perecer ante o cientificismo determinista de Freud, do outro lado ele retorna na idéia do fortalecimento do ego autônomo. Freud diz: “O homem vive com ilusões … porque estas ilusões fazem tolerável a miséria da vida,” mas as ilusões também escravizam o homem e, portanto, “se conseguirmos acordá-lo de seu estado de semi-sonho, ele poderá recuperar seus sentidos, tornar-se cônscio de seus poderes e suas forças, e mudar a realidade de forma que as ilusões passem a ser desnecessárias.”41 Ao compreender as “misérias da vida” o homem pode livrar-se tanto destas misérias quanto de suas ilusões, e reafirmar-se pelo exercício do controle da realidade. Aqui se vê o retorno do ideal humanista da personalidade autônoma e soberana: completa liberdade e pura potencialidade, o homem sem Deus retornando vorazmente à sua teomania ou, na expressão da máxima freudiana: “o inevitável retorno do reprimido.”42

C. A “Sina” da Liberdade em Freud?

À medida em que a típica tensão dialética do pensamento desenvolvido na dicotomia natureza/liberdade corre seu curso, ela evolui para uma dialética ainda mais tensa. Vendo a impossibilidade de se correlacionar o homem como verdadeiramente livre com a natureza determinada e cônscio de que uma visão científica da natureza humana coloca o homem dentro do determinismo da natureza, Freud redefine a liberdade na atividade reguladora do ego sobre a psiquê. Sob a direção do ego fortalecido, o homem passa a experimentar, se não verdadeira liberdade e felicidade, pelo menos uma “miséria reduzida.” Merold Westphal comenta:

Não devemos nos esquecer, entretanto, que a felicidade do ego terapeuticamente fortalecido é uma felicidade “reduzida,” e não a realização do princípio do prazer. É apenas uma situação ruim feita um pouco melhor… Freud, na verdade, nunca foi muito além de suas formulações iniciais em Studies in Hysteria (1895), dirigidas a pacientes que indagavam quanto à eficiência da terapia: “Mas você será capaz de convencer-se de que muito já será ganho se conseguirmos transformar sua miséria histérica em simples infelicidade…43

Certamente, “miséria reduzida” é melhor que nada, assim como uma liberdade relativa e circunscrita é melhor que total ausência de liberdade. Dessa forma, pode até parecer que Freud conseguiu, ainda que parcialmente, escapar da morte da liberdade e do determinismo implícito em seu paradigma. Entretanto, a sina do conceito humanista de liberdade autônoma não pode ser detida permanentemente, e as concessões já presentes em Freud antecipam a destruição dos próprios valores que ele luta para preservar. Sua síntese é ao mesmo tempo otimista em sua confiança na ciência e na razão (quer seja no estudo da natureza humana ou na possibilidade de se fortalecer o ego através do auto-conhecimento), mas pessimista ao reconhecer que, num universo naturalisticamente determinado, os ideais de realização humana plena, de liberdade, de auto-determinação, etc., não poderiam ser nunca totalmente realizados. O que resta de liberdade é apenas uma outra ilusão.44

A sombra da metapsicologia sintética de Freud se estende sobre a maior parte das subseqüentes escolas de psicologia seculares modernas. Há grande variedade de propostas e de escolas diametralmente opostas umas às outras, mas a dialética entre natureza e liberdade nunca é transcendida. Algumas escolas enfatizam os ideais humanistas, outras procuram novas formas de manter a dialética, enquanto outras ainda abrem mão dos ideais humanistas em prol de um determinismo naturalista consistente.45 As conexões entre a síntese freudiana, as psicologias profundas e as psicologias existencialistas ou humanistas são facilmente reconhecidas, mas nem sempre se percebe a ligação entre Freud e as psicologias naturalistas e deterministas, onde, talvez, a “sina” da liberdade intrínseca na metapsicologia freudiana se completa mais claramente. Além disso, se as psicologias existencialistas e humanistas — que são, em termos gerais, as fontes da psicologia popular e do movimento terapêutico moderno46 — mantêm uma certa ascendência nas clínicas e nos escritórios de psicólogos, o impacto das psicologias que seguem a linha do natural-determinismo, sobre o campo mais amplo das disciplinas exatas e humanas (da medicina à sociologia, das ciências criminais e forenses ao planejamento social, biogenética, estudos governamentais, etc.) faz com que essas sejam especialmente relevantes do ponto de vista apologético para demonstrar a “sina” da liberdade. Portanto, tendo observado que, na tentativa de preservar o conceito de liberdade humana, Freud acaba por substituí-lo por um conceito reduzido de liberdade — eis aí o primeiro ato da “sina” da liberdade — convém agora observar o reverso do processo — o segundo ato — no qual o determinismo naturalista, que começa por negar de todo o conceito de liberdade, acaba “contrabandeando-o” de volta.

II. B. F. SKINNER E A ABOLIÇÃO DA LIBERDADE

B. F. Skinner cria não possuir os escrúpulos humanistas que sustentavam a síntese freudiana e impediam a completa rendição dos conceitos de liberdade e personalidade ao determinismo da natureza. Não era também compelido pelo pressuposto de um “eu” transcendente e autodeterminado — pelo menos não na superfície. Ao contrário, Skinner dava caráter de absoluto ao âmbito da natureza, e descartava o âmbito da liberdade como irrelevante. Ainda preso à estrutura da dicotomia, ele insistia, entretanto, não só em desfazer-se dos supostos “mitos” de liberdade, dignidade humana, valor pessoal e autonomia, como também em abandonar qualquer esforço de decifrar, com base em conceitos efêmeros do tipo Deus ex machina, “por que e como a pessoa se comporta de dada maneira.”47 Ele explica claramente seu projeto:

Quase todos os problemas humanos envolvem o comportamento e não podem ser solucionados mediante tecnologias exclusivamente físicas e biológicas. O que é requerido é uma tecnologia do comportamento… Entretanto, ela não solucionará nossos problemas até que sobrepuje as visões pré-científicas tradicionais, que são profundamente arraigadas. Liberdade e dignidade ilustram a dificuldade. São propriedades do homem autônomo da teoria tradicional e essenciais para as práticas onde uma pessoa é responsabilizada por sua conduta e recompensada por suas realizações. Uma análise científica transfere tanto a responsabilidade quanto a realização para o meio ambiente. Também põe em jogo a idéia de “valores”… Até que se resolvam essas questões, a tecnologia do comportamento continuará a ser rejeitada e com ela possivelmente a única maneira de resolver nossos problemas.48

Curiosamente, Skinner vê seu imenso projeto — cujas implicações vão muito além da solução dos problemas internos da alma ou psiquê humana e incluem a reestruturação dos paradigmas de comportamento individual e social — como herdeiro de fato do determinismo inerente à visão freudiana. Mais especificamente, ele afirma partir da premissa freudiana de que atrás dos processos mentais estão sempre processos físicos e biológicos e que, portanto, não devem ser excluídos do determinismo da natureza.49

Se as afirmações iniciais de Skinner forem aceitas sem questionamento, pode parecer que ele tenha abolido a dialética inerente ao esquema natureza/liberdade, que tenha conseguido refletir sobre o comportamento e a natureza humanas de maneira puramente científica em harmonia com o determinismo natural e que ao menos tenha começado a entender a natureza humana de modo absolutamente imanente. Se isso fosse verdade, o máximo que se poderia dizer contra seu paradigma é que ele ofende ideais e valores preciosos demais, que sua visão é inaceitável porque não condiz com aquilo que se considera mais precioso no ser humano, ou seja, valor pessoal, dignidade, liberdade, etc. Poder-se-ia até redarguir que a visão proposta por Skinner está errada porque contradiz o pensamento cristão, porque nega o Criador. Tais objeções, porém — como Skinner e até mesmo Freud responderiam — traem um possível ato de auto-engano no qual o homem está disposto a apegar-se a ilusões simplesmente porque essas parecem tornar as “misérias da vida” mais toleráveis.50

No entanto, uma análise da proposta skinneriana, ainda que breve, revela que seu corajoso determinismo é um tanto quanto superficial, que nos porões secretos de seu cientificismo persiste teimosamente o ideal humanista de autonomia humana, pois assim como a proposta de liberdade autônoma exige, como contraponto, o determinismo natural, assim também a proposta de absoluto determinismo natural traz em secreto o conceito de um ego autônomo. Enquanto Freud concentrava a liberdade e a autonomia humanas estritamente na habilidade e potencial de controle do ego e na possibilidade de redirecionamento das energias psíquicas,— ou seja, liberdade restrita a um “jogo de relações quantitativas” —, o behaviorismo de Skinner nega a liberdade e, ao mesmo tempo, pressupõe um “eu,” um substrato de humanidade que distingue entre controles e estímulos aversos ou não aversos — um “eu” que pode até fazer de si mesmo e das forças que o condicionam um objeto de estudo —,51 distinguindo em sua análise o que é “bom” e “eficiente” para a preservação da espécie. Em suma, se Freud redefiniu liberdade em termos de “relações quantitativas,” Skinner acaba por reintroduzir o conceito de liberdade (inicialmente rejeitado) em termos de “julgamentos qualitativos” — ironicamente um campo muito mais subjetivo e vasto para a liberdade do que seu suposto cientificismo permite. Uma sondagem do projeto de Skinner confirma esta tese.

A. Descobrindo o Tema da Liberdade em Skinner

Em Walden Two (1948), uma de suas obras mais antigas, na qual Skinner propõe suas idéias em forma de ficção, já se notam os contornos básicos de todo o seu paradigma assim como a plena consciência de que esse paradigma consistia em uma cosmovisão completa. Quando o personagem que mais se identifica com o próprio autor escuta a acusação de que seu programa behaviorista “parece ter usurpado tanto o lugar quanto as técnicas da religião,” ele responde: “da religião, da família e da cultura … mas eu não chamo de usurpação.”52 É com essa audácia que Skinner procura construir um modelo interpretativo e formativo do comportamento humano, da natureza humana e de todas as relações individuais e sociais — modelo que deixa para trás conceitos como liberdade e dignidade — em prol da “terra prometida” a ser introduzida pela nova engenharia humana.53 Seu coerente desafio ao conceito humanista da liberdade (e da dignidade humana) provinha da rejeição prévia do outras categorias, três das quais, ironicamente, se relacionam de forma concêntrica com a sina da liberdade em seu pensamento e servem como excelentes prismas para uma breve investigação:54

1. Suposições Metafilosóficas e Postulações Sobre a Natureza da Realidade

Skinner alegava desinteresse pelas “grandes questões” da religião e da filosofia. Duas passagens em sua autobiografia se correlacionam ilustrando sua atitude geral. Primeiro, ao descrever-se como cientista, Skinner afirma seu desinteresse por “teorias psicológicas, equações racionais, análise de fatores, modelos matemáticos, sistemas hipotético-dedutivos ou quaisquer outros sistemas verbais que precisam ser provados.”55 Isso ele afirma ser sua atitude “baconiana,” ainda que reconheça que “sua posição behaviorista provém de outras fontes.”56 Mas o que exatamente sua ressalva quer dizer fica mais claro quando ele define e justifica o behaviorismo em termos de filosofia da ciência:

Behaviorismo é uma formulação que torna possível uma aproximação experimental efetiva do comportamento humano. É uma hipótese sobre a natureza de um objeto de estudo [a saber, o comportamento humano]. Pode precisar de clarificação, mas não precisa ser argumentada. Não tenho dúvida alguma do eventual triunfo desta posição — não porque será eventualmente comprovada, mas porque proverá a rota mais direta para o uma ciência humana bem sucedida.57

É óbvio que, quanto à sua filosofia da ciência, Skinner não está disposto a buscar qualquer justificativa — racional, pressuposicional ou lógica — exceto pela efetividade da tecnologia (ou, para ser mais exato, da técnica) que potencialmente decorre de seu paradigma. Tal atitude implica na recusa em reconhecer, ou até mesmo em discutir, os pressupostos e suposições filosóficas que sustentam sua filosofia da ciência, como, por exemplo, quando Skinner afirma sua recusa em passar da página doze da famosa crítica escrita por Noam Chomsky sobre sua obra Verbal Behavior.58

A segunda passagem fala do embaraçoso encontro de Skinner (como jovem estudante em Harvard) com Alfred North Whitehead (1861-1947). Durante uma festa, o filósofo, ao ouvir que Skinner era psicólogo disse: “um jovem psicólogo deve sempre manter-se atento à filosofia,” e Skinner, desconhecendo a identidade do “velhinho de calva brilhante” com quem discutia, retrucou: “muito pelo contrário,” a epistemologia é que deveria provir da psicologia.59

Quando o questionamento da validade de qualquer discussão de raízes filosóficas é correlacionado com a sugestão de que a psicologia behaviorista deveria servir como base para uma nova filosofia é que se começa a perceber quão radical são as implicações da recusa de Skinner em submeter seu paradigma a uma crítica estrutural. Skinner não admite que sua “filosofia da ciência” — que reconhecidamente determina sua visão da natureza, do homem e do conceito de liberdade — seja submetida a uma crítica externa ao seu próprio sistema. Logo, não basta que seu paradigma, com raízes triplas no determinismo radical, empiricismo e behaviorismo radical, se auto-sustente, mas ele mesmo se torna a fonte de uma epistemologia que, em troca, passa a determinar uma nova filosofia sobre os fatos e a ciência. É claro que Skinner afirmava que os resultados práticos justificavam o paradigma e que esse círculo era decorrência inevitável da estrita materialidade do universo num sistema fechado de fatos brutos, causa e conseqüência,60 a qual dispensava toda a metafísica, mas uma declaração prenhe e reveladora do próprio Skinner sugere uma história mais complicada:

Talvez, como sugere Jeremy Bentham em sua teoria de ficções, eu tenha tentado resolver meus primeiros medos de fantasmas teológicos. Talvez eu tenha respondido à pergunta de minha mãe, “O que é que os outros irão pensar?”, provando que eles realmente não “pensam” (mas a pergunta poderia muito bem ter sido “O que é que eles vão dizer?”). Eu costumava entreter-me com a noção de que uma epistemologia behaviorista era uma forma de suicídio intelectual, mas não há suicídio porque não há cadáver. O que perece é o homunculus — o homem interior espontâneo e criativo, a quem, ironicamente, se atribuíam antes as próprias atividades científicas que levaram a seu passamento.61

É irônico que o mesmo psicólogo que negava interesse pelas “grandes questões” é aquele cuja psicologia nega radicalmente toda a metafísica e com ela os conceitos e valores humanos tais como a liberdade; é ainda mais irônico que ele mesmo reconhecesse a possibilidade de que seu “não!” à metafísica pudesse fluir de razões pessoais de cunho metafísico. Neste caso, a negação da metafísica imbuída em seu paradigma representaria, na verdade, nada mais que uma suposição básica que só poderia ser caracterizada como de natureza metafísica. É Francis Bacon, de quem Skinner afirma provir sua preferência pela experimentação ao invés da observação, que soa o aviso: “Todo estudioso da natureza deve ter por suspeito o que o intelecto capta e retém com predileção.”62

2. Suposições Metapsicológicas e Postulações Sobre a Natureza do Homem

As suposições de Skinner quanto à realidade, quanto aos fatos e seu conhecimento, procedem de certas crenças quanto ao homem, as quais devem ser consideradas em termos de uma distinção entre o que é afirmado e o que realmente está sendo pressuposto. Sua posição quanto à natureza humana é definida negativamente, como no seguinte exemplo:

Podemos seguir o caminho tomado pela física e pela biologia concentrando-nos diretamente na relação entre comportamento e o meio ambiente e negligenciando os supostos estados mentais mediadores … não precisamos tentar descobrir o que realmente são personalidade, estados mentais, sentimentos, traços de caráter, planos, propósitos, intenções, ou os outros requisitos do homem autônomo, para prosseguirmos com uma análise científica do comportamento.63

É importante perceber que a recusa em aceitar uma essência da natureza humana vai além de simplesmente considerar esses conceitos supérfluos para os seus propósitos (isto é, a criação de uma tecnologia do comportamento). Skinner argumenta que esses conceitos não são apenas desnecessários, mas que na verdade revelam uma atitude pré-científica que atribui essências, qualidades inerentes ou naturezas a objetos, quando uma explicação causal do comportamento observado não pôde ser encontrada — um hábito que a biologia, a física e as ciências exatas abandonaram há tempos, mas que as ciências do comportamento têm dificuldade em renunciar.64 Tais “entidades explicativas,” diz Skinner, são ignorantes, vazias e mitológicas, tratando-se exatamente do tipo de comportamento que impediu o progresso das ciências físicas e biológicas no passado até que fossem progressivamente descartadas e que, agora, impedem o florescer das ciências humanas.65 Logo, para Skinner, é necessário não só o abandono das referências ao “homem interior,” porém, mais ainda, a total destituição do homem autônomo e livre, do “homunculus” ou “homem como homem,” cuja abolição “já se atrasa em muito.”66

Para que isto aconteça, porém, é preciso primeiro descartar, ou apagar progressivamente, os conceitos característicos do homem supostamente autônomo: liberdade, dignidade e valor pessoal.67 É necessário abandonar o estudo do homem como entidade e substituí-lo pelo estudo de seu ambiente, deixar para trás suas “qualidades” e concentrar-se em seu “comportamento,”68 pensar em termos de “fazer e reagir” e não em termos de “ser.”69 O comportamento, quer seja “operativo” ou “responsivo,” deve ser compreendido e moldado através de condicionamento mediante reforços positivos e mesmo controles aversivos (até que estes se tornem desnecessários).70 A utopia skinneriana promete então que, à medida que a nova ciência for desenvolvida e suas técnicas aplicadas, o homem se redefinirá não como “agente livre,” ou como “essência efêmera,” mas pelo seu agir e reagir, por meio daquilo que ele se torna dentro do pouco que herdou geneticamente (herança da ação do meio sobre seus ancestrais) e por meio do muito que recebeu de seu ambiente. Ele “conhecerá a si mesmo” tanto como “ego conhecedor” quanto como “ego conhecido,” tanto como “ego controlador” quanto como “ego controlado,” sendo que o primeiro aspecto em ambos os casos resulta de contingências sociais e o segundo, de “suscetibilidades genéticas.”71 Skinner arrisca até uma nova definição do que é um ego: “Um ego é um repertório de comportamentos apropriados para um dado conjunto de contingências.”72

Como “ego controlado” o homem experimenta os efeitos contínuos do ambiente, tanto natural quanto social. Como “ego conhecedor e controlador” ele evita estímulos aversivos e também age sobre o seu ambiente com o mesmo fim, ou seja, auto-preservação e, conseqüentemente, a preservação da espécie. É aqui que Skinner encontra a grande esperança, pois o mesmo “eu” que é controlado e determinado, também conhece e controla e, mesmo sendo mero fruto de seu ambiente, evolui seletivamente, levado pelas próprias contingências antecedentes a transformar seu ambiente intencional e progressivamente para preservar-se dos controles e estímulos aversivos.73

O grande problema, reconhece Skinner, é que o que consiste em estímulos subjetivamente danosos, quer em termos de contingências naturais quer sociais nem sempre corresponde ao que é objetivamente danoso (isto é, ameaça a preservação própria ou da espécie), causando grande dificuldade na previsão de como os estímulos afetarão o indivíduo, se serão recebidos como reforço positivo ou como controle aversivo.74 Ainda que consciente de tal dificuldade, Skinner simplesmente decide que a evolução da espécie e da cultura devem, por fiat, ter precedência. Ele descreve uma transformação conceptual radical que se torna imprescindível:

No quadro tradicional uma pessoa percebe o mundo ao seu redor, seleciona contextos a serem percebidos, discrimina entre eles, julga-os bons ou ruins, transforma-os para melhorá-los (ou piorá-los, se for descuidado) e pode ser tido como responsável por suas ações, sendo então recompensado ou punido de acordo com as conseqüências. No quadro científico o indivíduo é membro de uma espécie moldada pelas contingências evolutivas de sobrevivência e exibe processos de comportamento que o submetem ao controle do ambiente no qual vive e, em grande parte, ao controle do ambiente social que ele e milhões de outros como ele construíram e mantiveram durante a evolução da cultura. A direção da relação de controle é invertida: o indivíduo não age por sobre o mundo, o mundo age sobre ele.75

Uma transformação deve ocorrer: uma transição do “quadro tradicional” para o “quadro científico.” Skinner, contudo, não resolve o problema simplesmente identificando essa transição. A idéia de que essa transição deveocorrer e de que ela deve conduzir a uma ampla reestruturação da cultura a fim de que passe a manipular o ambiente social e a causar o reforço dos padrões de comportamento que preenchem o programa evolutivo, implica num julgamento qualitativo radical — que não pode ser explicado no paradigma de Skinner. É preciso que ele justifique não somente a base de tal julgamento — por que é que a evolução da espécie deve preceder o prazer individual ou qualquer outro parâmetro —, mas também como é que esse julgamento pode ser derivado unicamente das contingências antecedentes. De certa forma essa dificuldade lembra o conflito freudiano entre o “princípio da realidade” e o “princípio do prazer”: como explicar o salto evolutivo no qual o indivíduo passa a ter a preservação da coletividade como mais importante do que sua própria gratificação? Talvez os serviços do “homunculus,” o bastião da liberdade, ainda não possam ser totalmente dispensados.

3. Suposições Éticas e Desígnio de Uma Cultura

Skinner afirmou que seu programa se auto-perpetuaria uma vez que as técnicas de comportamento fossem desenvolvidas e aplicadas, e a nova cultura controlasse e moldasse o comportamento (tanto operativo como responsivo ativo), tornando agradáveis os padrões condizentes com o programa evolutivo. Ele descreve essa “nova sociedade” em termos quase utópicos e garante que as bênçãos de tal sociedade seriam mais que suficientes para “contrabalançar o orgulho ferido” da abdicação dos conceitos de liberdade e dignidade, ou seja, “reforçar abundantemente aqueles que foram induzidos por sua cultura a trabalhar para a preservação da mesma cultura.”76

Skinner reconheceu que o salto evolucionário, a transição da fase em que os mitos do homem autônomo funcionavam adequadamente — liberdade, dignidade, autodeterminação, etc. — para a nova fase na qual os mitos precisam ser substituídos pelo valor máximo da evolução e preservação da espécie, não ocorre automaticamente. A transição deve ser intencional, carece de desígnio e, portanto, de um planejador, um engenheiro social que mesmo sendo ele próprio “um produto da cultura que o próprio homem desenvolveu” e “parte do processo natural,” deixa espontaneamente de reagir apenas a seu condicionamento individual e se faz — num ato incrivelmente análogo ao imperativo categórico de Kant — um agente benevolente do programa evolutivo.77 E quem são esses “planejadores” que precipitam o salto evolucionário de uma forma tão autônoma e livre? Na superfície Skinner simplesmente afirma a possibilidade e necessidade desses indivíduos, mas talvez, de forma mais indireta, seja possível entender um pouco melhor o que eles representam.

Em Walden Two, já no final da história, que talvez seja a parte mais profunda e reveladora da obra, há um diálogo entre Frazier, o planejador da comunidade ideal, e Burris, o acadêmico que está sendo pouco a pouco seduzido pela comunidade. Burris indaga como é que o próprio Frazier, sendo apenas um ser humano e fruto do mesmo processo evolutivo que perpetuava o estado egoísta do homem, teria dado o “salto.” Frazier responde que “a ciência do comportamento é cheia de tais casos especiais… quando você chega ao ponto de aplicar os métodos da ciência ao estudo especial do comportamento humano, o espírito de competição comete suicídio.” Burris então comenta que Frazier parece assumir a postura de um benevolente co-Criador, ao que Frazier responde jocosamente, dizendo: “Talvez eu tenha que ceder a Deus em termos de antigüidade… ainda que eu tenha feito uma declaração mais clara do meu plano… eu poderia reivindicar um controle mais deliberado.” E quando Burris comenta a teomania patente nessas declarações, Frazier diz: “Eu gosto de fazer o papel de Deus! Quem é que não gostaria, nestas circunstâncias? Afinal de contas, até Jesus Cristo pensou ser Deus!” e logo depois aponta para sua comunidade e confessa emocionado: “estes são meus filhos, Burris… eu os amo.”78

Mesmo que se descontem as analogias com o divino, o que surpreende é a clareza com que Skinner, nas palavras de Frazier, reconhece a necessidade de que alguns homens, como ele próprio, transcendam sua suposta autonomia e cometam o ato de suicídio de seu próprio homunculus autonomus para que então proclamem sua extinção universal. Esse ato de suicídio do homem autônomo, de transcendência do conceito de liberdade, não é em si mesmo a reafirmação mais drástica de sua própria autonomia? Talvez isto explique porque ele parece assumir características quase divinas antes que possa “redimir” a sociedade de falsos valores como a liberdade e introduzir a sociedade harmoniosa que trabalha rumo à sua própria preservação.

Tibor R. Machan chega a semelhante conclusão em sua análise do paradigma de Skinner. Ele se refere à “perspectiva do olho divino em Skinner,” o passe de mágica com o qual ele quer alcançar temporariamente a “objetividade por excelência” para que possa planejar e criar o novo homem.79 Machan recorre a duas passagens em particular na obra Science and Human Behavior nas quais Skinner oferece analogias ao trabalho do engenheiro social. Skinner fala em “moldar o comportamento como o oleiro molda o pedaço de barro” e, depois, também descreve como no condicionamento de pombos o reforço de “pequenas variáveis do comportamento observado” pode levar a uma mudança efetiva da “altura na qual os pombos mantém suas cabeças.” Machan então comenta:
O problema é que enquanto há o escultor para o barro e o skinneriano para o pombo, não há um skinneriano comparavelmente posicionado para os skinnerianos. Skinner não acredita em intervenção divina; assim, não há como escapar do fato de que se o comportamento humano é como o comportamento de pombos, ele não pode apelar para uma inteligência externa que molde o homem, como é o caso com o barro e os pombos. Pois o crucial sobre o barro é que ele se materializa de acordo com os planos do escultor. Barro lançando ao acaso não é trabalho de escultores…80

O dilema não pode ser resolvido, pois a única maneira pela qual o determinismo de Skinner pode erradicar o conceito de liberdade do ser humano em geral é concentrando imensa liberdade e autodeterminação naqueles que deverão “criar” a nova ordem, ou seja, um pequeno vão humano entre o condicionamento evolutivo de até agora e o novo imperativo categórico da evolução da cultura e da espécie. E não importa quão concentrada ou particularizada essa liberdade seja, ela não deixa de ser o inevitável retorno do conceito humanista de liberdade autônoma que o paradigma todo supõe reprimir. A moral da história é clara: assim como toda tentativa do pensamento secular de vindicar liberdade para o homem à parte de Deus acaba por confrontar uma visão implacavelmente determinista do universo, também toda tentativa de “absolutizar” a natureza determinada do universo leva de volta ao encontro do homem supostamente autônomo — às vezes assumindo um caráter quase místico.

B. Ainda a Sina da Liberdade

O ideal humanista da liberdade permanece tão central no pensamento de Skinner quanto em qualquer outra tentativa de explicar a natureza humana e nenhum esforço, por mais homérico que seja, conseguirá realmente erradicá-lo. Como disse o próprio Skinner: “Nenhuma teoria transforma aquilo a respeito do qual se teoriza.”81

Porquanto Skinner não pode abandonar a dicotomia natureza/liberdade, não pode também escapar à dialética inerente ao pensamento secular: a natureza sempre tem que ser vista em contraposição a um conceito de liberdade autônoma, assim como a liberdade tem que ser vista em contraste com uma visão determinista da natureza. Esta é a “sina” da liberdade e Skinner não pode escapar dela porque descartou a priori o verdadeiro ponto de referência no qual se encontra significado e causalidade temporal para o universo e base para a verdadeira liberdade da criatura humana. O valor do pensamento de Skinner, visto da perspectiva transcendental do cristão, é exatamente o fato de que ele demonstra claramente o dilema da metapsicologia secular.

O mesmo Skinner que se propõe à abolição da idéia de liberdade autônoma e autodeterminação humana, conclui o seu Beyond Freedom and Dignity afirmando: “A visão científica do homem oferece possibilidades empolgantes … ainda não vimos o que o homem pode fazer do próprio homem!”82

C. Liberdade Coram Deo

As continuidades e descontinuidades entre os pensamentos de Freud e Skinner servem a um propósito apologético importante, ao evidenciar palingenesicamente o que ocorre quando se constroem metapsicologias que consideram o homem abstraído de sua relação com Deus. A problemática da liberdade humana é central nesse contexto, mas também tem grande importância no pensamento cristão. Freud procurou entender a alma humana e fortalecer o ego — fazendo-o efetivamente transcender o determinismo genético-biológico —, mas seu progresso, ainda que surpreendente, foi altamente relativo e nunca ultrapassou a visão quase pessimista de uma “miséria reduzida.” Skinner, que buscou coerência em seu materialismo e, portanto, começa por negar a liberdade humana e afirmar um determinismo estrito, termina por propor uma “busca do santo graal” da sociedade perfeita e por contrabandear de volta os conceitos que alegava ter abandonado ao pressupor a autonomia dos criadores da nova sociedade. O que permanece constante é a sina da liberdade, o suposto atributo central do homem autônomo, mediante o qual ele presume ignorar o Deus soberano e interpretar a si mesmo e ao mundo. Mas porque é impossível escapar da realidade absoluta daquele a quem ele ignora, o seu falso ideal de liberdade se transforma, ao fim, numa contradição que não pode ser ignorada e nem resolvida.

Em contraste com a dialética entre natureza e liberdade, entre pura contingência e pura chance, a verdadeira liberdade só se realiza como produto da soberania de Deus, fruto do seu shalom. Portanto, é só coram deo, como diziam os reformadores, que se pode desenvolver uma metapsicologia adequada. À medida que o pensamento cristão avalia o pensamento secular e expõe suas insolúveis antinomias, à medida em que os apologetas cristãos, por exemplo, encaram as metapsicologias seculares e procuram demonstrar que a alma humana e o comportamento humano só podem ser compreendidos em relação a Deus como Criador, Juiz e Redentor, então o verdadeiro conceito de liberdade fica cada vez mais claro: liberdade identificada mais como liberdade “para” gozar e glorificar a Deus do que como liberdade “de” alguma coisa — liberdade como análogo criado da liberdade divina, mas nunca autônoma; liberdade para o shalom divino; liberdade real, mas derivativa.

Esse é o conceito de liberdade que começa no conhecimento de Cristo, no conhecimento de si mesmo à luz de Cristo e na resposta livre e amorosa à revelação daquilo para o que Deus predestinou seus filhos desde antes da fundação do mundo. Esse é o único conceito de liberdade com lastro suficiente para trazer inteireza à psiquê e à sociedade. É também com base nessa liberdade, de natureza escatológica e, portanto, futura e presente, que o cristão não só encontra sua liberdade, mas também promove liberdade substancial, libertação e redenção — até mesmo no ambiente obsessivo, esquizofrênico e paranóico deste final de século, e até mesmo para aqueles cuja rejeição de Deus os fez cegos para com a sua própria sina.

Fonte: Jornal “Folha de São Paulo”, Folhetim, 23 de setembro de 1979

Tags: Freud, Liberdade, Psicanálise, Sigmund Freud, Skinner

Por: Denis Casarotto - 02/10/2014


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